Sebastião Salgado: entre a ética e a estética
Por Carlos Rangel, julho 2024
INTRODUÇÃO
Recentemente, uma das fotografias de Sebastião Salgado foi escolhida pelo jornal New York Times como uma das 25 imagens capazes de sintetizar a era moderna. Algo bastante compreensível se lembrarmos que Salgado dedicou muitos anos da sua vida registrando o declínio do trabalho industrial, as grandes migrações, a degradação urbana e os impactos do capitalismo no meio ambiente em várias regiões do mundo, especialmente nas mais pobres e desfavorecidas.
Portanto, muitas das suas imagens poderiam ser a “escolhida”. Mas a que foi selecionada retrata a corrida do ouro na Serra Pelada (1986), trabalho monumental lembrado na sua última exposição, intitulada Gold (2019), no SESC/São Paulo, com 56 fotografias em alusão aos 40 anos de Serra Pelada. A monumentalidade dessa obra deve-se tanto ao conteúdo documental/artístico quanto ao processo técnico/procedimental do fotógrafo, que aguardou 6 anos até obter a autorização para os 33 dias de imersão com 400 rolos de filme na bagagem.
O presente artigo não tem pretensão acadêmica. Seria mais justo considerá-lo como um ensaio sobre a natureza ética/estética do trabalho desse notável fotógrafo brasileiro, tendo em conta algumas premissas filosóficas de Aristóteles acerca do fazer artístico e suas implicações na esfera pública. Essa reflexão (um tanto criativa) é oportuna à medida que lembramos a atualidade da obra de Sebastião Salgado como parâmetro nas discussões sobre temas que envolvem a “autenticidade” da fotografia como obra de arte ou registro documental/factual.
Qual a especificidade profissional do trabalho de Salgado? Ele mesmo prefere se definir como fotojornalista, mas é evidente que ele ultrapassou a fronteira do fotojornalismo, cristalizada na segunda metade do Século XX. Efetivamente, seu trabalho vai além do registro e alcança uma sofisticação estética que o distingue como um dos mais importantes fotógrafos documentaristas em nível mundial.
Essa dicotomia entre arte e registro gerou termos recorrentes como fotografia “humanista”, ou “documentário artístico” ou “foto engajada”, expressões que tentam solucionar essa complexa ambivalência normalmente encontrada nas fotografias jornalísticas, documentais e artísticas. A questão central é como poderíamos traçar limites entre esses diferentes terrenos, sem cair na arbitrariedade conceitual que empobrece a arte e turva a racionalidade com paradigmas gerais? Essa pergunta não se resolve com esse ensaio, obviamente. Mas o objetivo é propor, mesmo temporariamente, alguns parâmetros que podem auxiliar a percepção crítica do trabalho artístico dos fotógrafos e suas possíveis implicações/responsabilidades na esfera social.
O FATO E SUA REPRESENTAÇÃO
Nos trabalhos que resultaram em livros e exposições como Other Americas (1977-84), Fome no Sahel (1984-85), Workers (1991), Terra (1997) e Êxodos (1999), Salgado cumpre com os 3 critérios básicos da foto documental ou jornalística, ou seja: 1) revela uma temporalidade, quando o enquadramento recorta o evento em um aqui e agora; 2) traz uma objetividade, pois transmite de maneira honesta a representação dos fatos acontecidos e 3) fornece uma narrativa, pois articula diferentes elementos para sugerir ao leitor/observador as circunstâncias do ocorrido.
Contudo, o poder extraordinário das imagens de Salgado ultrapassa as decisões sobre enquadramento, composição e iluminação, proporcionando metáforas visuais acerca das condições de vida das pessoas que vivem na periferia da sociedade contemporânea. À semelhança de Edward Weston, George Brassaï e Robert Capa, ele busca estabelecer uma relação emocional entre a obra e seus observadores ou, nas palavras aristotélicas, busca proporcionar um efeito catártico na percepção estética daqueles que se deparam com suas fotografias.
De fato, Sebastião Salgado especializou-se em tirar proveito do “momento decisivo” – como propunha o fotógrafo Cartier-Bresson – para impactar o observador e alargar sua visão do mundo. Esse momento tão importante não é apenas obra do acaso, mas o resultado de dois processos incorporados pelo fotógrafo e que, doravante, chamarei de poiético e mimético.
Sinteticamente, usando a fotografia como argumento, a poiese é o impulso do espírito humano para criar algo a partir da imaginação e dos sentimentos, portanto é a prática que resulta em algo capaz de “re-apresentar” o mundo real para atender uma necessidade humana. Os engenheiros, técnicos e operários que concebem e fabricam as máquinas fotográficas tornam possível a fotografia, por meio da sua praxis profissional. Tal praxis tem seu componente poiético à medida que é necessário um esforço imaginativo, bem como um certo número de competências e habilidades para criar os recursos e aparatos da fotografia.
No entanto, a liberdade criativa de quem realiza a fotografia é bem maior, permitindo a execução de múltiplos níveis de expressão artística. Esses níveis poiéticos se tornam tão mais complexos e elevados esteticamente quanto mais o fotógrafo é capaz de simbolizar o mundo sensível em termos de representação emocional e psíquica. Em síntese, transformar a realidade em representação imaginada. A questão que surge disso é: como é possível representar o real simbolicamente, sem perder a verossimilhança?
Dessa questão, surge a necessidade de comentar o terceiro conceito fundamental – a mimese. O processo mimético é bem mais que a imitação ou representação de alguma coisa com o propósito de criar algo que se assemelhe a um referencial externo. Na verdade, a mimese é fundamental na percepção tanto objetiva quanto subjetiva da realidade e permite a compreensão/aprendizado a partir de referentes externos que, depois de introjetados, passam a ser os elementos epistemológicos com os quais reconhecemos o mundo e a nós mesmos. Portanto, não se trata apenas de garantir, por meio da verossimilhança, o nexo entre objeto e contexto, mas estabelecer um fluxo de compreensão e sensibilidade entre fotógrafo, imagem e observador.
Com o que já escrevi, percebe-se que mimese e poiese são complementares e, quando esses processos alcançam o efeito de alterar a percepção do mundo ou alargar os horizontes de expectativas do observador, então se dá a catarse. Como demonstração do que foi apresentado até aqui, analiso a foto de Sebastião Salgado escolhida pelo New York Times.
Serra Pelada chegou a concentrar 50 mil pessoas em condições de trabalho e convivência surpreendentes no estado do Pará, considerando a precariedade e os riscos envolvidos na busca do ouro. A lente de Sebastião Salgado revelou, inicialmente aos brasileiros e, depois, ao mundo, as circunstâncias degradantes que os seres humanos são capazes de suportar para alcançar a subsistência e, talvez, uma situação socioeconômica mais digna. A figura 1 destaca mimeticamente a estrutura e o sistema de exploração, ao enquadrar a distribuição espacial das “cavas” (buracos de aproximadamente seis metros quadrados) e a divisão do trabalho pelos diferentes níveis hierárquicos de apropriação da riqueza produzida.
Conforme já era tradição no garimpo amazônico, o proprietário da terra dividia a área em “cavas” para interessados em realizar a “cata” do material. O garimpeiro que recebia a cava podia contratar trabalhadores pelo sistema de participação nos lucros, chamado “meia-praça”. Esse sistema, reestruturado pela intervenção federal (1982), que privilegiou o trabalho assalariado e a formalização dos garimpeiros credenciados como patrocinadores/empregadores, tinha dois grandes problemas funcionais. Primeiro, a incerteza do lucro era enorme, não apenas porque as jazidas estavam distribuídas erraticamente pelo terreno, mas também porque a cata só poderia ocorrer fora do verão amazônico (de junho até novembro), de tal maneira que as chuvas destruíam o rastro dos veios junto com as cavas, não permitindo a continuidade de um ano para o outro.
O segundo problema era que a cata manual exigia grande quantidade de mão de obra, com a consequente necessidade de estrutura de apoio e logística. À medida que mais pessoas migravam para Serra Pelada e a exploração se intensificava, o sistema de “meia-praça” tornava-se inexequível e o descarte da terra sem ouro exigia uma operação exaustiva e de alto risco (MATHIS, 1995). Na figura 1, nota-se o destaque dado aos “saqueiros”, homens contratados ao preço de 1g a 1,5g de ouro ao dia, para transportar sacos de até 30Kg por uma distância de 25 Km a 30 Km, incluindo percursos como esse retratado por Sebastião Salgado, onde se pode ver as famosas escadas “adeus-mamãe”, utilizadas de maneira caótica e temerária pelos trabalhadores.
Percebe-se que as explicações de contexto atualizam a imagem, proporcionando novos significados e ampliando a percepção cognitiva daquela realidade “imitada” pelo ato fotográfico. É evidente que Salgado não realizou um estudo teórico momentos antes de enquadrar a foto, destacando os personagens dentro de uma narrativa que explica o garimpo amazônico e as condições sociais daquela realidade. Contudo, a imersão do fotógrafo naquele ambiente gerou um aprendizado mimético que fez com que sua percepção visual encontrasse sínteses expressivas, capazes de informar o observador, ainda que intuitivamente, sobre a lógica interna daquele ecossistema humano/natural.
Esse processo educativo da mimese e sua posterior conexão com os saberes do observador não alcançariam seu resultado pleno se não existisse um empenho poiético da parte do fotógrafo. Se a razão nos leva a “entender” uma dada realidade, é a emoção que favorece a “compreensão duradoura” daquilo que é apresentado. A neurociência já desvendou esse gatilho emocional do aprendizado ao encontrar íntima relação entre o sistema límbico (emoção) e o lóbulo frontal (cognição). Embora possa pesquisar e planejar seu trabalho, é quase intuitivamente que o artista fotógrafo constrói sua “poética”, ao simbolizar por meio da sinédoque (quando se cria uma relação vinculante entre o apresentado e um referente externo) ou da metáfora (relação estabelecida entre duas representações, estabelecendo-se um vínculo simbólico entre elas) algo “que faz sentido e emociona”.
Nessa foto selecionada, ocorre quase que imediatamente uma correspondência entre o que vemos e a imagem de um formigueiro (os próprios garimpeiros denominavam-se “formigas”). Ao mesmo tempo que percebemos se tratar de pessoas trabalhando em condições insalubres, somos tomados pela compreensão da racionalidade organizacional daquela operação, da existência de uma hierarquia e de funções que disciplinam e humanizam o espaço e o trabalho. À semelhança das formigas que despendem toda a sua breve existência carregando seu fardo de cada dia, aqueles homens se submetem ao labor despersonalizado, orgânico e coletivo, em função de uma meta que os tornam diferentes das formigas: eles sonham com a liberdade proporcionada pela riqueza, que provavelmente não ocorrerá.
Esse estranhamento, quase uma antítese entre a aparência e a essência, gera em nós a empatia necessária para compreender aquela situação e, consequentemente, a possibilidade de uma experiência catártica. Para Aristóteles, é o temor e a compaixão que despertam a empatia no observador, pois já não vemos apenas um personagem e sua jornada trágica, mas a condição humana representada nele, realidade que bem poderia ser a nossa também, se fôssemos submetidos às mesmas necessidades urgentes.
A aflição ou perturbação que sentimos ao imaginar que o mesmo infortúnio poderia ocorrer em nossas vidas, ou que tal ocupação desordenada provocasse o mesmo caos e destruição no lugar onde vivemos, fazem com que o acontecimento retratado não pareça distante, mas próximo e imediato. Ao mesmo tempo, sentimos compaixão por todos aqueles garimpeiros que desejam algo que deveria ser razoável e justo para todos, mas que exige deles o sacrifício extremo da submissão a uma ordem natural sub-humana.
A FOTOGRAFIA E SEU CONTEÚDO ÉTICO
Em entrevista recente, Sebastião Salgado disse que seu papel era essencialmente retratar a dignidade humana. Essa frase, seguramente construída na esteira de uma longa controvérsia criada no entorno do seu trabalho, relativiza as opiniões mais críticas, que atribuem o sucesso de Salgado à desgraça alheia e sugerem que o fotógrafo seria um oportunista em viagem pelo mundo a explorar a “indignidade” humana.
Sem aderir aos aspectos mais passionais dessa polêmica, bastaria lembrar que Sebastião Salgado já compartilhou parte de seus ganhos financeiros com fundações filantrópicas e que, ao longo da sua jornada profissional, tornou-se dedicado ativista em defesa dos direitos humanos e colaborador da UNISEF (Fundação das Nações Unidas para a Infância).
De outra maneira, o propósito aqui é avaliar criticamente essa temática, utilizando mais uma vez a contribuição aristotélica. “Não se pode olhar de forma impune e toda a imagem é uma narrativa” (BAZÍLIO, 2020, p. 132). Nessa perspectiva, toma-se a narrativa proporcionada pela fotografia em função da sua capacidade retórica, ou seja, a forma como se articulam a racionalidade (logos), a emoção (pathos) e a ética (ethos) para persuadir o observador sobre a “verdade” ou “desejo de verdade” contidos na imagem construída pelo fotógrafo.
Nesse momento, é necessário retomar o que foi escrito nas páginas anteriores e lembrar que a racionalidade, presente no efeito de verossimilhança e na sensação de “verdade” documental da fotografia, advém de um aprendizado mimético de parte do fotógrafo e de uma relação poiética estabelecida com o observador. É por conta disso que esse observador “compreende” o que está retratado, e também se emociona e modifica sua percepção do mundo.
Entretanto, quando se discute os atributos éticos da fotografia, não bastam os conceitos mencionados anteriormente, isso porque a gente se perderia na análise dos procedimentos, ou na recepção estética, sem considerar os valores implícitos na veiculação da imagem. Portanto, é precisamo articular a imagem tridimensionalmente, de tal maneira que o ethos revele sua face “lógica” (coesão e coerência entre a imagem e os valores desdobrados a partir dela) e também sua face “patética”, quando os valores são vivenciados psiquicamente a partir da construção imagética do fotógrafo.
Essa abordagem tridimensional tem a vantagem de colocar ethos, logos e pathos no mesmo grau de importância, evitando dicotomias que se tornaram recorrentes como retórica X argumentação; manipulação subliminar X compreensão crítica; individualismo consumista X solidariedade coletiva; etc. Nesse sentido, quando se toma a fotografia de Sebastião Salgado como obra capaz de suscitar uma reflexão ética, admite-se que a imagem é uma “coisa” no mercado de bens simbólicos e também uma realização estética, comprometida com a moralidade compartilhada entre o fotógrafo e a comunidade de observadores/consumidores.
A fotografia jornalística ou documental, como parte de um produto à venda no mercado editorial, tem uma clara função de atrair a atenção/curiosidade dos leitores e favorecer a tiragem comercial. A mercantilização da imagem, que também ocorre na fotografia publicitária, sobrepõe diferentes moralidades e pode gerar conflito de valores morais. Contudo, para o fotógrafo profissional documentarista ou para o fotojornalista há duas dimensões morais preponderantes a serem consideradas: a primeira tem a ver com a autenticidade da foto; a segunda, com a coerência entre os valores morais veiculados na imagem enquadrada pelo fotógrafo e a moralidade coletiva historicamente situada da comunidade de potenciais consumidores daquela fotografia.
Com o propósito de aumentar o efeito mimético (logos) e poiético (pathos), ampliando a probabilidade catártica da imagem, o fotógrafo pode se sentir tentado a alterar a cena antes do “clic”; ou a manipular a imagem depois do registro, tornando-a “mais limpa” e atraente, ou até mesmo agregando elementos completamente estranhos à cena original; por fim, o profissional pode criar ancoragens verbais com o uso de legendas, induzindo interpretações desejáveis. Esse conjunto de procedimentos duvidosos ou reprováveis remetem para uma “ética profissional”, ou conjunto de valores que orientam o comportamento do fotógrafo em benefício da probidade profissional.
Mas o que se discute, no caso de Sebastião Salgado, é a segunda ordem de comportamento ético, ou seja, quando o fotógrafo deve baixar a câmera ou qual enquadramento/abordagem atende às moralidades em vigor?
Fonte: Raisg.org
Foi em março de 1987 que o diretor de imagem do escritório londrino da respeitada agência Magnum, Neil Burgess, recebeu as fotos de Serra Pelada feitas por Sebastião Salgado. Imediatamente, o trabalho ganhou o interesse do diretor de arte da prestigiada revista britânica Sunday Times, que divulgou para a Europa e, depois para o mundo, o impactante cenário do garimpo brasileiro na região de Carajás, Pará.
Na figura 2, observa-se um evento de briga, que era algo recorrente no garimpo, em virtude da intensidade das paixões e das frustrações de pessoas espremidas uma contra as outras, e que poderiam mudar da fortuna para a desgraça (ou ao contrário) em questão de dias ou até mesmo horas. Esse ambiente explosivo foi disciplinado pela intervenção do governo e pela ação do controverso Major Curió que, entre outras coisas, proibiu mulheres, bebidas e armas no garimpo. A fonte de lazer (e de todo o tipo de desfortúnio) foi afastada em 30 Km do local de extração, núcleo que acabou se transformando em uma cidade, Curionópolis, em homenagem ao militar interventor que chegou a ser o seu prefeito.
Diante da foto (figura 2), o enquadramento evita a identificação dos três homens em conflito corporal. Seguramente, essa imagem foi selecionada entre outras registradas naquele momento, preservando a identidade das três pessoas que estavam em exposição dramática e constrangedora. Essa probidade do fotógrafo advém de um esforço racional de discernir o que é aceitável e o que é reprovável na sua prática profissional. Não apenas isso, também implica calibrar a dimensão patética daquilo que é fotografado.
Dor, sofrimento, violência, morte e degradação das condições da dignidade humana são representações que causam fácil comoção e suscitam uma linha frágil que separa o esforço de denúncia humanista de um lado, e o oportunismo inescrupuloso, motivado pelo desejo de notoriedade, do outro. Entretanto, na fotografia de Salgado, mesmo uma cena violenta não provoca repulsa no observador, mas certa consternação devido ao tratamento estético e ético que o fotógrafo logrou alcançar.
Ainda na figura 2, a gestualidade dos personagens; o contraste de texturas, luz e sombra; e o enquadramento plongée resultam em uma fotografia primorosa que transmite o ambiente de tensão, plenamente coerente com o contexto humano em que se dá o evento. A opção ousada pelo P&B, em uma época na qual a fotografia colorida dominava as páginas das revistas e a publicidade, proporcionou o aprofundamento da dramaticidade e simplificou, semioticamente, os efeitos miméticos e poiéticos em relação ao olhar do observador.
Como já foi dito, a discussão ética possível só ocorre no nível das moralidades. A moralidade é o conjunto de valores preponderantes que orientam o comportamento humano em um dado tempo histórico e em uma dada localização social/espacial. Logo, é relativa não apenas no quadro mais amplo do tempo histórico e das sociedades, mas também no comportamento de grupos sociais, o que delimita alguns valores mais relevantes como fator de distinção identitária e para atender funções e necessidades específicas de cada grupo. Nesse sentido, pode-se falar de moralidades familiar, religiosa, empresarial, desportiva, ambiental ou militar, bem como de uma moralidade profissional do fotojornalismo.
Os códigos de ética do jornalismo incluem, como valores e preceitos fundamentais, a busca da verdade, a veracidade e a precisão das informações. Entretanto, parece evidente que a foto documental/jornalística não apenas mostra o sofrimento do outro, mas também um método de apropriação desse sofrimento. As construções imagéticas jamais são inocentes ou apenas “racionais”. É preciso considerar que as situações de vulnerabilidade e destrutibilidade suscitam um campo polifônico de sentidos e juízos morais.
A segunda fotografia pode despertar diferentes efeitos sobre o imaginário dos observadores, de acordo com os deslizamentos de sentido de cada moralidade. Ambientalistas poderiam realizar um salto indutivo e mimeticamente associar a degradação comportamental humana com a ambiental; religiosos não teriam dificuldade de recitar excertos bíblicos sobre a avareza e o poder destruidor das paixões; pesquisadores de gênero talvez percebessem a prevalência da pulsão de morte mais entre homens heteronormativos; seguramente, não faltaria o grupo de observadores que destacariam a situação desumanizada e brutalizada daqueles indivíduos reduzidos às condições mais primitivas de civilidade.
Se os códigos de ética enfatizam a verdade como valor preponderante, é o desejo de verdade que destaca o que ocorreu antes e o que ocorrerá depois da foto. Expor objetivamente a dor, a violência e a vulnerabilidade de pessoas pode ser um ato disruptivo das crenças reacionárias e das situações de normatividade da exploração/dominação social. No entanto, quando se agrega a essa racionalidade (logos) a empatia solidária (pathos) com aqueles atores que, assim como nós, têm um círculo afetivo, história de vida e condições íntimas de existência, consegue-se construir uma retórica capaz de incutir a reflexão ética (ethos) e promover condições simbólicas de atualização do imaginário coletivo.
Se o “recorte” ou a mimese do enquadramento fotográfico é essencialmente uma decisão poiética de sinédoque (a parte pelo todo), é na metáfora que se realiza o desejo de verdade eticamente comprometido, por meio da extrapolação das visões de mundo tradicionais, dos estereótipos e preconceitos. Não basta racionalmente criar códigos com regras formais (como os 19 artigos criados pela Federação Nacional de Jornalistas Brasileiros de 2007) que prescrevem “o respeito ao direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão”. É necessário considerar o efeito emocional de adesão do público, em conexão imprescindível com o desejo de fazer prevalecer o que é justo, bom e verdadeiro.
CONSIDERAÇÃO FINAL
Todo artista, e aí se pode agregar os fotógrafos documentaristas com seu propósito de alcançar “o belo”, deseja obter o reconhecimento e a admiração do grande público. O sofrimento alheio pode ser um bom recurso, se for considerado que, entre os anos 1955 e 2008, 88,2% das imagens premiadas na categoria “Foto do Ano”, do World Press Photo, expõem algum indivíduo em situação de dor e vulnerabilidade (BARCELOS, 2009, in BAZÍLIO, p. 138). No entanto, como oportunidade de reflexão e como forma de concluir esse ensaio, gostaria de sugerir que, por meio da triangulação consciente de mímese, poiese e catarse, bem como de ethos, pathos e logos, os fotógrafos profissionais e amadores consigam projetar a fotografia a um patamar muito além do simples registro, tornando-a uma experiência estética relevante e eticamente comprometida.
ALGUMAS REFERÊNCIAS UTILIZADAS
ARMIN, Mathis. Serra Pelada. Papers do NAEA, v.1, n. 050, Belém, 1995. Disponível em https://periodicos.ufpa.br/index.php/pnaea/article/view/11954
SERVA, Leão. Sebastião Salgado na Amazônia: Serra Pelada, disponível em: https://www.raisg.org/pt-br/radar/sebastiao-salgado-na-amazonia-serra-pelada. RAISG, Julho de 2019.
BAZILIO, Emanuele. Et. al. Ética e fotojornalismo contemporâneo decolonial. In Dossie Comunicação, cultura e seus desafios, V. 7, 2020, disponível em file:///C:/Users/carlo/Downloads/biblioteca,+%C3%89tica+e+fotojornalismo+contempor%C3%A2neo+decolonial_itamar+nobre.pdf
SALGADO, Sebastião. Trabalhadores: uma arqueologia da era industrial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
SALGADO, Sebastião. Gold. São Paulo: Taschen, 2019